terça-feira, 6 de julho de 2010

Exposição “ Corpo a Corpo” – Vila do Conde - 2000

“Depois vamos ver aquela tralha…”

“De solidão, apenas solidão nenhuma morte mata. O que nos mata é tanta gente enchendo a nossa solidão” . Jorge de Sena – in Peregrinato ad Loca Infecta

Em boa lógica, arte e tralha são conceitos antinómicos. Supõe-se, e bem, que a função da arte é superar, sublimar, transfigurar o mundo da tralha. De facto, o objecto estético procura despojar-se do supérfluo, do acessório, construindo-se como relação que ao real pede a sua matéria para sobre ele trabalhar, elaborando neste processo a “única” lógica que o permite ler. Mas o que nós pedimos à arte é que nos ofereça um mundo onde também possamos habitar, isto é, que torne visível o que sempre nos escapa.

Ora a pintura de Olga Barbosa obriga-nos a olhar para muita da tralha em que nos enredamos, muitos dos casos e das histórias que fazem do nosso percurso um afastamento permanente. De quê?

A paleta desvenda-nos irritações e sustos, escaninhos de memórias que não atendemos e, nesta medida, permite-nos enfrentar aquelas tralhas que nos aprisionam. Mais: ao incomodar-nos, alerta-nos para os lugares do nosso acomodamento, o silêncio e o vazio de todos os nossos sem saberes. É de uma arte empenhada, assim, a que a pintura de Olga Barbosa nos oferece, ao propor-nos falar da nossa existência inautêntica.

Mas se a tralha pode ser a malha do nosso descontentamento, pode revelar-se a bóia da nossa salvação; as cortiças que impedem que a marca sobre as águas se dissipe; que o nosso aviso de nós a nós mesmos se torne reconhecível como, como “corpo-tralha” que submerge nas sombrias zonas da memória, no lago que do todo configura a pergunta pelo todo no nosso tempo e no nosso espaço. Esta tralha que sendo malha é o lençol do nosso desespero; é a franja das nossas velas – do tecido fino das nossas velas.

Como navegar, pois, nas aras dos nossos corpos, das nossas casas?

Como povoar a nossa solidão? Como partilhar a palavra, aquela que os deuses, como fogo e água, nos ofereceram sem débito e sem crédito? Aquela que só os poetas, os que das cores e das linhas, também fazem as rugas de uma divindade jovem?

Podemos então ver aquela “tralha”. Os quadros, estes quadros, são necessariamente um dos nossos espelhos.

Haverá destino mais puro para a arte? Haverá uma solidão melhor povoada?

À alienação que nos corrói, podemos, então e nomeadamente através desta pintura de Olga Barbosa opor uma multiplicidade de discursos emancipadores, pelo exercício de uma razão crítica.


Eugénio Peixoto

Maio 2000


Exposição “ Sentir os laços” – 1999 - Porto

A verdadeira arte opaciza os casos, que porventura são fonte de inspiração ou de origem: rasura-os e ao rasurá-los, transcendo-os.
Se perante um destes quadros apetece perguntar de que falam, o que vêem, o que ouvem estas personagens, como se procurássemos o fio de uma história que nos fosse dado escutar; o significado do todo que marca a pintura de Olga Barbosa, projecta-nos para além dos motivos mais recônditos que a fizeram emergir.
É que os quadros só falam com os quadros, e nesta fala, descoberta que sob o sedimento dos primeiros dizeres acodem em nós, falam em nós de coisas-em-nós: os laços que dizem a cartografia da nossa liberdade enredam-se aqui em arquivos de irremediáveis opressões, de tenazes persistências que a memória conserva, e, agora, supera,reelabora.
Mas não será este um dos sinais da nossa condição e, com ele, de toda a arte?
A menina-retalho-boneca-repasto que denuncia os símbolos do seu devir, é o olhar geométrico da mulher que pode olhar a infância, os seus mitos, a violência e a opressão que teimam em persistir. Ainda que possa sofrer, porque iluminada, mormente por esta pintura de Olga Barbosa, sabe como resistir.

Eugénio Peixoto 1999